O Brasil vivia o surto de microcefalia, causado pela epidemia de infecções pelo vírus zika, quando Lúcia* (nome fictício), esperava a chegada da filha. O medo da contaminação a levou a utilizar repelente “24 horas por dia”. Além disso, ela vivia um relacionamento “complicado” com o pai da menina, e só depois entendeu que passava por violência psicológica. Tudo isso ocorria enquanto ela morava em uma cidade diferente da família e se sentia sozinha.
A carga emocional foi grande ao longo de toda a gestação e continuou após o nascimento da filha. Ela estava apaixonada pela bebê, mas ao mesmo tempo sentia uma tristeza que não conseguia compreender. “Eu chorava no banho, chorava penteando o meu cabelo. Eu chorava bastante e não entendia o porquê”, conta.
A saúde mental materna ainda é um tabu, e uma nova lei amplia a assistência à mulher durante a gravidez e o puerpério para incluir o cuidado com essas questões. A partir de maio de 2024, hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde das gestantes, públicos e privados, serão obrigados a promover atividades de educação, conscientização e esclarecimentos sobre saúde mental dessas mulheres.
A determinação se deve à lei nº 14.721, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no último dia 9 de novembro. A norma foi criada a partir do projeto de lei 130/2019, da deputada Renata Abreu (Podemos-SP), e altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para ampliar a assistência no período da gravidez, do pré-natal ao puerpério.
A lei prevê que assistência psicológica gestantes, parturientes e puérperas usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS) recebam apoio psicológico após avaliação do profissional de saúde no pré-natal e no puerpério, com encaminhamento de acordo com o prognóstico. Segundo o texto, o atendimento psicológico pode começar ainda na gestação, durante o pré-natal, e prosseguir até o puerpério.
Para a psicóloga clínica e obstétrica Ghislayne Paiva, a lei dá visibilidade à saúde mental da mulher que se torna mãe, assim como para a própria Psicologia — área ainda repleta de estigmas. Ela explica que a gestação pode estar ocorrendo em contextos diversos que podem ocasionar ansiedade e estresse: é o caso de uma gravidez não planejada ou fruto de um relacionamento que já acabou.
Até nos casos em que o bebê foi “milimetricamente calculado”, esses sentimentos podem estar presentes. “Porque a partir do momento que isso acontece (a notícia da gestação), muitas coisas irão mudar na vida dela e ela só sabe disso na hora realmente que está grávida”, aponta a psicóloga. O momento do pré-natal é uma oportunidade para conversar com essa mulher e entender como ela está, além de observar o desenvolvimento e a saúde do bebê.
Ter esse acompanhamento ainda durante a gravidez é importante inclusive para a gestante saber o que pode ocorrer após o parto, em relação tanto à própria saúde emocional quanto aos cuidados com o bebê. Segundo a profissional, no pré-natal psicológico são abordadas todas as mudanças que vão ocorrer: como ficarão a limpeza e a organização da casa, a licença do trabalho, quem será a rede de apoio, como será a amamentação, a existência do banco de leite para caso seja necessário etc. Além disso, a gestante é preparada para a possível ocorrência do baby blues.
Em nota enviada ao Diário do Nordeste, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) informou que o profissional de psicologia já integra as equipes multidisciplinares que atuam nas unidades de alta complexidade da Rede Sesa, incluindo maternidades. Dessa forma, segundo a pasta, as gestantes recebidas nos hospitais estaduais já dispõem de atendimento psicológico especializado, de acordo com as necessidades apresentadas por cada paciente. Quanto à Lei 14.721, o órgão afirma que é necessário mais tempo para estudo, planejamento, incentivo e implantação nas unidades básicas e especializadas de saúde.
CONSCIENTIZAÇÃO NO LOCAL DE TRABALHO
Por experiência própria, a servidora pública Flávia* (nome fictício), aponta a importância da assistência à saúde mental da mulher durante a gestação e o puerpério. Foram meses organizando a casa para a chegada da bebê, que hoje tem 7 meses, e vivendo a gestação “com todo amor e carinho do mundo”. Logo após o parto, porém, já percebeu que algo não estava “normal”.
No pós-operatório, ela não conseguia dormir, estava angustiada e tinha vontade constante de chorar. Com isso, buscou a antiga psicóloga, que a encaminhou para um psiquiatra — mas, inicialmente, não comprou o remédio prescrito. “Ainda existe um certo tabu, um certo preconceito da gente mesmo”, comenta. Poucos dias depois, lembra que teve uma crise “muito pesada”.