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Propaganda contra liberdade política contamina democracias

Há romances que se tornam best-sellers porque são leitura fácil. Ou porque tocam num tema popular. Mas, durante décadas, milhões de leitores do denso “Doutor Jivago” não sabiam que o romance do russo Boris Pasternak valeu ao autor um prêmio Nobel com ajuda da CIA.

Isso mesmo: a agência americana de inteligência aceitou uma sugestão de parceiros do serviço de espionagem britânico e distribuiu clandestinamente o original em russo na União Soviética, onde a obra havia sido banida pelo governo do premiê Nikita Kruschev. O lançamento, passado de mão em mão, foi um sucesso.

“Doutor Jivago” é uma história de amor e um épico que cobre anos de convulsão antes e depois da Revolução Bolchevique de 1917. No começo de 1958, a CIA afirmou, num memorando, que se tratava de uma obra de grande valor para propaganda, por sua “natureza provocadora” e pela chance de estimular cidadãos soviéticos a indagar “o que está errado no governo deles.”

Propaganda de regimes não é monopólio de ditaduras, mas o final da Guerra Fria, do mundo dividido em dois blocos, criou uma nova modalidade de propaganda de “economia mista”. Ela parte de autocracias e emprega cleptocratas não identificados por ideologia. Nesse cenário, as democracias ocidentais estão levando uma surra.

Sai em julho nos Estados Unidos “Autocracy, Inc.” da historiadora Anne Applebaum, que torço para ser logo traduzido no Brasil. É leitura para qualquer interessado no destino da liberdade política, mas seria especialmente útil para quem papagaia propaganda russa nos corredores de palácios em Brasília.

Na segunda metade do século 20, o esforço de ditaduras como a China ou a União Soviética era concentrado em censurar informação em casa, convencer a população de que seus regimes repressivos eram ilhas de ordem e estabilidade.

Neste milênio, a ofensiva se voltou para fora, e o objetivo é convencer cidadãos livres de que a democracia é o inimigo. Está dando tão certo que Mike Turner, o deputado republicano líder do Comitê de Inteligência da Câmara jogou a toalha em abril: admitiu que seus colegas de partido repetem recados de Vladimir Putin no Congresso.

Como explicar que políticos criados sob o forte anticomunismo da Guerra Fria, acocorados sob mesas escolares em simulações de um ataque nuclear, derretem-se diante de um ex-agente da KGB, um assassino em massa que, nesta semana, unilateralmente mudou duas fronteiras marítimas com a Lituânia e a Finlândia?

O livro de Applebaum, ganhadora de um prêmio Pulitzer, explica como o ditador contemporâneo trocou a ideologia e a solidão no topo por uma sofisticada rede transnacional, seja da China, da Rússia ou do Irã, com criminosos financeiros, especialistas em tecnologia e propaganda. A autora detalha operações bem-sucedidas que contaminam as mídias jornalísticas na Ásia, na África e na América Latina. Um exemplo é a “agência de notícias” Pressenza, fundada em Milão e transferida para o Equador, em 2014, que publica, em oito línguas, conteúdo “voltado para a paz”, com financiamento do Kremlin via empresas privadas.

A ilusão do apreço global pela democracia, depois da queda do Muro de Berlim e, em seguida, o terrorismo de inspiração islâmica deixaram governos democráticos despreparados para resistir à sabotagem que tem seus cidadãos como cúmplices. Não vai vir do Estado o combate legítimo e eficaz a esta ameaça. Quem dorme com a porta de casa aberta não pode cobrar proteção contra assalto.

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