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‘Devolve nosso ouro’?: afinal, o que aconteceu com o ouro que Portugal retirou do Brasil

Esta matéria foi originalmente publicada em 21 setembro de 2021, mas foi atualizada com novos fatos envolvendo o tema

“Concordo até que [os portugueses] repatriem todos os imigrantes [brasileiros] que lá estão, devolvendo junto o ouro de Ouro Preto e aí fica tudo certo, a gente fica quite.”

Foi assim que o ministro da Justiça do Brasil, Flávio Dino, comentou na terça-feira (07/11), um recente caso de xenofobia contra uma brasileira em Portugal.

Dino, que fez a declaração num evento em Brasília, se referia a ofensas feitas no aeroporto do Porto, onde uma mulher gritou para uma brasileira “voltar para sua terra” e que brasileiros estão “invadindo Portugal”.

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A frase do ministro da Justiça sobre a devolução do ouro se junta a uma série de memes e provocações postadas por brasileiros nas redes sociais, em assuntos que envolvem os dois países.

Ciclo do ouro

Mesmo antes do início do chamado Ciclo do Ouro, no início do século 18, registros históricos apontam que já existia exploração do metal no Brasil, ainda que de forma incipiente.

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Há relatos sobre a região de Paranaguá, no Paraná, pelo menos algumas décadas antes, e ainda de exploração em jazidas em São Paulo desde o século 16.

Mas foi mesmo com as descobertas na região de Minas Gerais, no fim do século 17, que o ouro passou a ser o principal produto extraído da então colônia portuguesa, tomando o lugar da cana-de-açúcar, que vivia grande declínio diante da concorrência caribenha.

O número da quantidade total retirada da terra brasileira durante o Ciclo do Ouro não é exato: alguns registros importantes se perderam (como durante o incêndio na Alfândega de Lisboa em 1764) e muitos mineiros e comerciantes contrabandeavam o produto dentro e fora do território, fugindo da tributação (e do registro) do quinto, o imposto real que cobrava 20% da produção de ouro.

Dito isso, a estimativa do historiador Virgílio Noya Pinto, autor do livro O Ouro Brasileiro e Comércio Anglo-Português, é a mais amplamente utilizada por historiadores.

Ele estima que a produção brasileira durante o século 18 foi de 876.629 quilos. Outra estimativa referenciada, mais antiga, do geólogo Pandiá Calógeras, inclui a Bahia nos cálculos e chega a 948.105 quilos.

“A gente nunca vai saber esse volume (do ouro levado para Portugal). Tenta-se estimar, principalmente com registros da chegada à Europa, e a gente consegue ter uma ideia”, explica o historiador Leonardo Marques, professor de América colonial na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Para efeito de comparação, dados da World Gold Council (conselho mundial do ouro) e da Metals Focus mostram que o Brasil produziu em 2019 cerca de 87 mil quilos de ouro. Vale salientar, porém, que durante o século 18 as técnicas eram bastante rudimentares.

Números à parte, fato é que a grande maioria desse ouro foi parar em solo europeu — destino esse refletido no meme usado nas redes sociais e na declaração do ministro da Justiça.

Mas faz sentido falar hoje de desvantagem do Brasil e benefício para Portugal, já que naquela época faziam parte de um mesmo império?

Para Marques, apesar de haver um anacronismo na brincadeira — ou seja, quando tentamos usar conceitos e ideias atuais para tentar analisar uma época completamente diferente —, ela levanta discussão importante sobre a herança colonial.

“Naquele momento, não havia uma separação entre Brasil e Portugal. Mas os efeitos humanos e ambientais da história da mineração são sentidos aqui até hoje, e não lá na Europa. Tudo aquilo que mudou o Brasil tem uma implicação de longuíssima duração”, diz.

Fome de ouro portuguesa

A exploração do ouro no Brasil surgiu num momento em que Portugal, a Europa e o mundo enfrentavam uma crise econômica.

Parte dela é explicada por uma escassez de metais preciosos no mercado, após a euforia com as descobertas das minas de prata pelos colonizadores na América espanhola.

Essa prata, que começava a se esgotar, era usada para trocas comerciais entre europeus e regiões asiáticas, como a China, e também para fabricar moedas.

Para complicar a situação de Portugal especificamente, a União Ibérica (a unificação das coroas espanhola e portuguesa) havia acabado, em 1640, os holandeses tomaram inúmeros entrepostos portugueses na Ásia e a produção açucareira no Caribe, em especial em Barbados, ascendia.

“Passa a existir um estímulo da coroa para essa busca aqui, o que vai transformando o interior da América portuguesa”, contextualiza o historiador Leonardo Marques, que desenvolve pesquisas sobre o comércio de ouro nesse período.

“Há indícios de que alguns os colonos já usufruíam desse ouro antes, mas só no finalzinho do século 17 que isso explode e se torna público”, diz ele.

Registro do Bureau of Mines (Departamento de Minas) dos EUA mostra que, no século 18, a produção de ouro das Américas chega a responder por 85% da produção mundial. No século 17, esse número era de 66%, e, no século 16, apenas 39%.

“Esse salto todo é Minas Gerais. É algo monumental, inédito na história. De longe, o Brasil se tornou o principal distribuidor de ouro no mundo”, destaca Marques.

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