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Estupidificação da educação

As pessoas em geral ainda resumem a escola à sala de aula e à figura docente. Falta considerar que a escola é um espaço-tempo que proporciona uma série de coisas para além da sala de aula. Além do processo de ensino-aprendizagem, é importante reafirmar que a escola é um espaço de socialização fundamental em nossas vidas. É lá que fazemos amigos, que reforçamos algumas coisas que aprendemos em casa (quando temos essa chance), que aprendemos que nem tudo será da forma como queremos…

Um deputado federal da extrema direita foi eleito presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados. Com base nessa deplorável (e, quem sabe, perigosa) notícia, convido leitoras e leitores a refletir sobre o que vem a ser uma escola, um dos espaços em que o processo educativo ocorre, além de mostrar uma pequena parte da complexidade que uma instituição na qual passamos parte de nossas vidas envolve. Em outras palavras: até que tenhamos uma escola em funcionamento, muitos são os passos dados. Aquilo que vemos de modo natural, algo que, para nós, está ali desde sempre, esconde múltiplos aspectos. Ao contrário do que se pensa, escola e educação são temas difíceis.

Este texto não pretende reafirmar o fato de o deputado federal em questão ser absolutamente inapto ao desempenho da função. Não seria necessário um texto para fins demonstrativos. É uma postura bonita ter humildade em reconhecer aquilo que podemos ou não fazer. O deputado eleito não tem lastro para debater educação, assim como eu não conseguiria fazer uma cirurgia cardíaca em alguém, e sou extremamente bem resolvido quanto a isso. Qualquer cidadão ou cidadã que não tenha o propósito de destruir o pouco, muito pouco, que foi feito no Brasil em termos educacionais sabe que ele não teria condições sequer de integrar tal comissão. Apenas para ilustrar: o próprio, ao ser perguntado sobre um tema polêmico, nos dizeres da entrevistadora, como a Terra plana – polêmico no Brasil, em razão da extrema direita que tem a capacidade de resgatar obviedades soterradas, pois isso deixou de ser uma polêmica há muitos séculos –, disse que não estudou o assunto. Temos um presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados que não sabe que a Terra é, comprovadamente, um geoide.

Tudo indica que, para o atual presidente da Comissão, discutir educação se resume a combater uma suposta doutrinação, combater uma suposta ideologia de gênero, dentre outros absurdos. Vale lembrar que o mesmo sujeito já cometeu crimes flagrantes de transfobia, revelando seu ódio pela diversidade, o que não surpreende. O despreparo fica translúcido quando buscamos o que o próprio deputado federal se propõe a fazer enquanto presidente da Comissão. Falo com base no que o próprio presidente postou nas redes sociais. O autor do post começa dizendo que “Debateremos temas cruciais para a educação no Brasil: Plano Nacional de Educação, segurança nas escolas, educação básica e muito mais”. O próprio presidente da Comissão não sabe o que fará, dada a vaguidão com que discorre sobre seus afazeres. Ele poderia fundar uma charcutaria. O que significa debater educação básica? Será que ele tem noção da dimensão disso? Em seguida, o mesmo fala em “iniciativas para uma educação que respeite a vida e a dignidade humana desde a concepção (…)”. Até que ele assumisse a presidência, a educação não respeitava a vida e a dignidade humana? Esse respeito à vida vale para todas as pessoas ou só para pessoas brancas, heterossexuais e cristãs? O “desde a concepção” foi inserido no texto talvez por cacoete. O que podemos perceber, apenas com essas expressões iniciais, é um sujeito perdido, um sujeito que não sabe dizer o que será feito e nem o motivo pelo qual passou a ocupar tal cargo. O grande ponto, e o grande perigo, está na forma com que isso se manifesta aos desavisados. O deputado consegue afirmar que não sabe o que vai fazer de modo grudento e de fácil digestão, receita que funciona para a extrema direita brasileira que sempre se orgulhou de não estudar.

E é justamente esse orgulho de não estudar que causa preocupações. Não cabe mencionar todas as sandices propagadas pela extrema direita, basta lembrar que foram eles os responsáveis pela defesa do homeschooling que, além de ineficaz, é algo que beira a crueldade, pois, não sei se sabem que em muitas famílias pobres as refeições oferecidas pelas escolas públicas, ainda que precárias, são vistas como cruciais. Além disso, como um trabalhador ou trabalhadora que mora numa periferia de uma região metropolitana e, além das oito horas de labuta, realiza um deslocamento casa-trabalho que soma muitas horas diárias, vai empenhar um trabalho sistemático no sentido de escolarizar as crianças? Então, para início de conversa, e ainda apresentando uma visão reducionista da instituição escolar, podemos assegurar que a escola realiza uma função que, em um país desigual como o Brasil, é fundamental: ainda é o espaço de acolhimento e de oferta de parte das calorias diárias das famílias pobres. Como não levar isso em consideração na hora de afirmar que as crianças devem ser escolarizadas em casa? Como não ponderar sobre um quadro socioeconômico desolador? Além do que as exigências para tal prática não condizem com a realidade do país. Exige-se que pais e responsáveis tenham nível superior. Além disso, avaliações periódicas seriam realizadas pela instituição de ensino em que a criança estiver matriculada. Como saber o que as crianças estão aprendendo em casa para que as avaliações sejam preparadas? É impossível ver algo além de sadismo, ignorância, desconexão da realidade, cinismo e economia porca em uma proposta desse tipo.

A proposta do homeschooling, que contou com vasto apoio dos (neo) conservadores é uma prova de que pouco se entende e, para piorar, falta seriedade na hora de debater a educação. Uma proposta como essa evidencia o fato de que as pessoas em geral ainda resumem a escola à sala de aula e à figura docente. A velha escolinha de ler, escrever e contar ainda está presente no imaginário de muitas pessoas. Falta considerar que a escola é um espaço-tempo que proporciona uma série de coisas para além da sala de aula. Além do processo de ensino-aprendizagem, conduzido e mediado pela figura docente, é importante reafirmar que a escola é um espaço de socialização fundamental em nossas vidas, apesar de quaisquer críticas que possamos e devamos fazer à instituição escolar. Ainda assim, é lá que fazemos amigos, é lá que reforçamos algumas coisas que aprendemos em casa (quando temos essa chance), é lá que aprendemos que nem tudo será da forma como queremos. É um espaço que ainda é fundamental. Depositar sobre a família a responsabilidade pela decisão de levar ou não as crianças à escola é de uma desonestidade tremenda, pois sabemos bem que muitas são as famílias que não foram ou foram muito precariamente escolarizadas. Poderiam propor homevangelization, por que não o fazem? Certamente haverá uma resposta e certamente concordarei, ao menos em parte: convívio, senso comunitário, a sensação incomparavelmente maravilhosa de ser parte de algo, comunhão, tudo aquilo que, de um modo ou de outro se aprende na escola pública, gratuita e laica de nosso país. A escola, enquanto espaço marcado pelo desempenho de funções que vão além das aulas, ainda é importantíssima. Não é preciso dizer que a proposta do homeschooling rasga a nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que, apesar de quaisquer falhas, ainda é o que garante o mínimo na direção de tentar oferecer uma educação pública de qualidade.

A extrema direita criou a tese de que escolas são espaços de doutrinação e de que os professores são supostamente de esquerda. Então podemos afirmar que todos os professores e todas as professoras que atuam em nosso país seguem uma mesma vertente política. Será? Façam uma entrevista sobre preferências políticas de docentes e tirem suas conclusões. Vejam a multiplicidade. Então, por que essa demonização de uma categoria que, apesar dos problemas, ainda é a responsável pela escolarização de nossas crianças, adolescentes e pessoas adultas que não puderam acessar a escola quando mais novas? Qual o problema com uma profissão que é socialmente relevante, e será por muito tempo?

O reducionismo não cabe na escola. O debate educacional não pode ser simplista. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional garante a liberdade e a pluralidade de concepções políticas, garantindo, também, a autonomia (sempre relativa) dos processos de ensinar e aprender. O que seria a tal doutrinação, afinal? Se eu trabalhar, por exemplo, a geopolítica da água, eu preciso naturalizar e achar razoável o fato de 20% da população mundial não ter acesso a uma água minimamente decente? Seria indigno. E mais, seria um péssimo exemplo. Isso é doutrinação? Falar que todo e qualquer habitante deste planeta, cujo formato o presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados desconhece, deve ter acesso à água potável é doutrinação? A tal ideologia de gênero que tanto apavora a extrema direita nada mais é que o respeito às diferenças e às múltiplas subjetividades/identidades. Ensinar respeito nas escolas é doutrinação? Ensinar que individualidades devem ser respeitadas por uma questão tão básica é ideologia de gênero?

Diante da postura do deputado agora presidente de uma Comissão tão importante, e diante de uma preocupação com o Plano Nacional de Educação e com a dignidade das pessoas “desde a concepção”, valem algumas perguntas:

1) Será que no próximo Plano Nacional de Educação (2024-2034) serão considerados tópicos fundamentais como combate ao racismo e combate à intolerância religiosa dentro das escolas e por vias pedagógicas? Será que o Plano acenará para as Leis 10.639/03 e 11.645/08?

2) Será que no mesmo plano, considerando que o atual presidente da Comissão se diz preocupado com a dignidade das pessoas, haverá propostas com o objetivo de acolher estudantes das mais diversas orientações sexuais, garantindo o respeito à lei, acolhendo e fazendo com que as instituições de ensino cumpram com seu papel social?

3) Será que haverá um debate minimamente sério sobre formação docente, considerando a formação universitária, programas de estágio mais abrangentes e que aproximem cada vez mais escola e universidade, acesso à pós-graduação (o que requer tempo) e fiscalização das redes de ensino, já que a maioria desrespeita a lei do um terço para planejamento?

4) Será que já pararam para pensar que em algum momento pretérito instalaram uma enorme desigualdade entre as áreas do conhecimento presentes na escola? Por que Matemática é mais importante que Artes? Por que Português é mais importante que Educação Física? E por que isso se reflete na carga horária das redes de ensino, o que acaba por refletir nas representações sociais e estereótipos dos professores e professoras das diferentes disciplinas?

5) Será que há em pauta, considerando as funções com as quais o presidente da Comissão afirmou assumir compromisso, um plano de combate ao analfabetismo funcional?

6) Será que o PNE levará em conta a existência e as demandas das escolas do campo e escolas indígenas?

Sabemos da falta de conhecimento, sabemos da falta de formação científica e sabemos, acima de tudo, da falta de seriedade. O debate educacional não é algo a ser feito por arruaceiros de redes sociais. O debate educacional exige estudo, exige muitas horas de leitura, mais horas ainda de prática em sala de aula, exige refinamento das reflexões, dentre outras condições. Obviamente, e lamentavelmente, sabemos que a resposta para as pouquíssimas questões anteriormente expostas será a mesma, será “não”. Não pensaram nesses temas importantíssimos, pois, para o atual presidente da Comissão, o que importa é exterminar o uso do pronome neutro.

Apesar de tudo que foi escrito, é importante sinalizar que foi impossível chegar perto do que realmente é uma instituição escolar. O que foi possível fazer foi apenas apresentar alguns pontos para reflexão, exatamente para provar que a educação não é, nunca foi e jamais será um tema fácil. Por uma série de motivos, contraditoriamente, é um dos poucos temas que muitas pessoas consideram simples. É aquele tema sobre o qual todos opinam sem o menor pudor e, muitas vezes, sem o menor bom senso. E o preço que a sociedade paga é ter uma pessoa sem a menor qualificação, sem a menor vontade e sem o menor gosto presidindo um órgão de suma importância para todas as pessoas.

Lamentavelmente, a educação, atividade que deveria ter cunho emancipatório, acabou por se tornar uma ferramenta a ser usada por aqueles que buscam aniquilar diferenças e voltar à tecnocracia dos tempos ditatoriais, quando a educação tinha a mera função de formar mão de obra barata e subqualificada. É sempre fundamental lembrar que educação não combina com retrocesso.

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